Adeus, Eduardo Lourenço
Hoje, no dia da Independência, morreu Eduardo Lourenço, talvez o mais importante filósofo português do século XX, e que ainda esteve muito activo nas primeiras duas décadas do século XXI.
O seu livro O Labirinto da Saudade - Psicanálise Mítica do Destino Português, de 1978, continua a ser um ensaio de referência absoluta para uma compreensão filosófica da história da cultura portuguesa.
Dizia Eduardo Lourenço no início do livro: "Tudo se passa como se não tivéssemos interlocutor. (E esta famosa forma mentis reflecte-se na nossa criação literária, toda encharcada de monólogos, o que explica, ao mesmo tempo, a nossa carência de fundo em matéria teatral e romanesca.)".
José Saramago certamente preencheu uma parte desta carência.
Deixamos aqui alguns excertos desse ensaio com o fim de lembrar algumas das ideias-chave da obra:
"O nosso surgimento como Estado foi do tipo traumático e desse traumatismo nunca na verdade nos levantámos [...] (Talvez não seja por acaso que os mitos historiográficos ligados ao nascimento de Portugal tenham um perfil tão freudiano com sacrilégios maternos e palavra quebrada, [...])."
"Sessenta anos [de dependência da Espanha] em contacto directo (e na economia invisível da história porventura frutuoso) com o interlocutor imediato de um viver que foi e é sempre múltiplo diálogo mas que nós teimamos em contemplar como solilóquio, permitiram, enfim, que nos descobríssemos às avessas, que sentíssemos na carne que éramos (também) um povo naturalmente destinado à subalternidade. Esta experiência constitui um segundo traumatismo, de consequências mais trágicas que o primeiro. E disto, os nossos historiadores não cuidaram."
"[O] Sebastianismo activo [foi] o máximo de existência irrealista que nos foi dado viver; e o máximo de coincidência com o nosso ser profundo, pois esse sebastianismo representa a consciência delirada de uma fraqueza nacional, de uma carência, e essa carência é real. [...] a nossa razão de ser, a raiz de toda a esperança, era o termos sido."
"O século XIX foi o século em que pela primeira vez os portugueses (alguns) puseram em causa, sob todos os planos, a sua imagenm de povo com vocação autónoma, tanto no ponto de vista político como cultural." "[...] o Modernismo que aparece entre nós [...] traduz, sob a pluma de Fernando Pessoa, uma révanche de um complexo de inferioridade cultural, de marginalização cultural de que nenhum apelo ao exemplo francês (como Eça tentara) nos podia libertar por ser ele mesmo a fonte desse complexo. Ninguém, como Pessoa, se encontra em condições de nos libertar de tal complexo, de que a dependência cultural francesa é apenas um acidente. [...] A verdadeira missão que ele se atribui ao profetizar-se como Super-Camões é a de resgatar o subconsciente nacional não tanto de históricos e acidentais complexos de dependência mas de si mesmo, transfigurando a gesta particular de um pequeno-grande-povo, em gesta da consciência universal. [...] essa interpelação traduzir-se-á por rasura integral do sentido comum de patriotismo."
"Adulação permanente e espectacular da criança-rei (sobretudo o macho), porta aberta para as suas pulsões narcisistas e exibicionistas, ausência de perspectiva social positiva, salvo a que prolonga a afirmação egoísta de si, tais são os mais comuns reflexos da educação portuguesa, defesa natural de mães frustradas nela pelo genérico absentismo e irresponsabilidade paternos. [...] A sociedade portuguesa não é a única que vive sob o modo de uma quase total exterioridade e em obediência ao pendor irresistível de ocupar nela o lugar que implica o mínimo de resistência e o máximo de promoção social segundo a norma do parecer mas é certamente uma das mais perfeitas no género."
"Abriu-nos os olhos, mas a luz era demasiado forte", disse José #Saramago sobre o amigo #EduardoLourenco https://t.co/L9I4Z0Y1Ki
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Palavras de #EduardoLourenço sobre o “O último Caderno de Lanzarote”, de José #Saramago pic.twitter.com/bhgp5JnyQ4
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Morreu o eterno amigo de José #Saramago aos 97 anos
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O pensador e ensaísta pic.twitter.com/GkOyKkqVX6
Sobre Eduardo Lourenço, disse José Saramago: "Uma irresistível e já automática associação de ideias faz-me sempre recordar a Melancolia de Dürer quando penso na obra de Eduardo Lourenço. Se o Só de António Nobre é o livro mais triste que alguma vez se escreveu em Portugal, faltava-nos quem sobre essa tristeza reflectisse e meditasse. Veio Eduardo Lourenço e explicou-nos quem somos e porque o somos. Abriu-nos os olhos, mas a luz era demasiado forte. Por isso, tornámos a fechá-los."
Estudos comparados Eduardo Lourenço - José Saramago: