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Jose Saramago
 

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“A terrível tragédia iniciada em 1492“

Por ocasião destas sempre estranhas celebrações do Dia da ‘Hispanidade’ convém, antes de mais, tentarmos “compreender este rio infindável de vivos e de mortos, este sangue perdido, esta esperança ganha, este silêncio de quem leva séculos protestando por respeito e justiça, esta ira represada de quem finalmente se cansou de esperar” (José Saramago).
E também porque hoje o governo espanhol irá aproveitar a situação na Catalunha para uma demonstração de força, exibindo mais poder militar do que nunca, incluindo, contra a sua vontade, a polícia nacional, e convidando a sociedade a participar com o lema #OrgullososdeserEspañoles.
Hoje, quem para a Catalunha defendeu o direito a votar, ver-se-á transformado no Outro, naquelas e naqueles que já a fatídica tradição do Dia da Raça subalternizou, seja na Espanha ou em Portugal.
Por isso, convém que lembremos o que Saramago escrevia em 1998:

“Em 1721, com uma ingenuidade fingida que não escondia a acidez do sarcasmo, Charles-Louis de Secondat perguntou-nos: «Persas? Mas, como é possível ser-se persa?». Vai já para trezentos anos que o barão de Montesquieu escreveu as suas famosas Lettres Persanes, e até agora ainda não conseguimos encontrar a maneira de elaborar uma resposta inteligente à mais essencial das questões que se contêm no roteiro histórico das relações entre os seres humanos.
De facto, continuamos a não entender como foi possível a alguém ter sido «persa» e, ainda por cima, como se já não fosse desproporcionada tal extravagância, persistir em sê-lo hoje, quando o espectáculo que o mundo oferece nos pretende convencer de que só é desejável e proveitoso ser-se aquilo que, em termos muito gerais e artificiosamente conciliadores, é costume designar por «ocidental» (ocidental de mentalidade, de modas, de gostos, de hábitos, de interesses, de manias, de ideias...), ou, no caso demasiado frequente de não se ter logrado chegar a tão sublimes alturas, ser-se ao menos bastardamente «ocidentalizado», quer esse resultado tenha sido alcançado pela força da persuasão quer, de modo mais radical, se outro remédio não houve, pela persuasão da força.
Ser «persa» é ser o estranho, é ser o diferente, é, numa palavra, ser outro. A simples existência do «persa» tem bastado para incomodar, confundir, desorganizar, perturbar a mecânica das instituições, o «persa» pode ir mesmo ao extremo inadmissível de desassossegar aquilo de que todos os governos do mundo são mais ciosos, a soberana tranquilidade do seu poder. Foram e são «persas» os índios do Brasil (onde os sem-terra representam agora uma outra modalidade de «persas»), foram mas já quase deixaram de ser «persas» os índios dos Estados Unidos, foram «persas», no seu tempo, os incas, os maias, os aztecas, foram e são «persas» os seus descendentes, lá onde quer que tenham vivido e ainda vivam. Há «persas» na Guatemala, na Bolívia, na Colômbia, no Peru.
Também sobreabundam os «persas» na dolorida terra mexicana, que foi de onde a câmara interrogadora e rigorosa de Sebastião Salgado trouxe o estremecimento das comovedoras imagens que aqui frontalmente nos interpelam. Que dizem: «Como é possível que vos falte, a vós, “ocidentais” e “ocidentalizados” do Norte e do Sul, do Este e do Oeste, tão cultos, tão civilizados, tão perfeitos, o pouco de inteligência e de sensibilidade suficiente para compreender-nos, a nós, aos “persas” de Chiapas?». De isso, realmente, se trataria: de compreender.
Compreender a expressão destes olhares, a gravidade destes rostos, o simples modo de estar juntos, de sentir e de pensar, juntos, de chorar em comum as mesmas lágrimas, de sorrir o mesmo sorriso, compreender as mãos do único sobrevivente de uma matança colocadas como asas protectoras sobre as cabeças das filhas, compreender este rio infindável de vivos e de mortos, este sangue perdido, esta esperança ganha, este silêncio de quem leva séculos protestando por respeito e justiça, esta ira represada de quem finalmente se cansou de esperar.
Quando, há seis anos [1992], as alterações introduzidas na Constituição Mexicana, em obediência à «revolução económica» neoliberal, orientada do exterior e impiedosamente aplicada pelo governo, vieram pôr termo à distribuição agrária e reduzir a nada a possibilidade de os camponeses sem terra disporem de uma parcela de terreno para cultivar, os indígenas acreditaram que poderiam defender os seus direitos históricos (ou simplesmente consuetudinários, no caso de se pretender que as comunidades índias não ocupam nenhum lugar na história do México...), organizando-se em sociedades civis que se caracterizavam e assim se continuam a caracterizar, singularmente, por repudiar qualquer tipo de violência, começando pela que poderia ser a sua própria. [...]
Aí, entre as névoas densas dos cimos e dos vales, iria germinar a semente, da rebelião. Os índios de Chiapas não são os únicos humilhados e ofendidos deste mund em todas as partes e épocas, com independência de raça, de cor, de costumes, de cultura, de crença religiosa, o ser humano que nos gabamos de ser soube sempre humilhar e ofender aqueles a quem, com triste Ironia, continua a chamar seus semelhantes. Inventámos o que não existe na natureza, a crueldade, a tortura, o desprezo.
Por um uso perverso da razão viemos dividindo a humanidade em categorias irredutíveis entre si, os ricos e os pobres, os senhores e os escravos, os poderosos e os débeis, os sábios e os ignorantes, e em cada uma dessas divisões fizemos divisões novas, de modo a podermos variar e multiplicar à vontade, incessantemente, os motivos para o desprezo, para a humilhação, para a ofensa. […]
Como escreveu um dia essa figura, por muitos motivos excepcional e exemplar, que conhecemos sob o nome de subcomandante insurgente Marcos, «um mundo onde caibam muitos mundos, um mundo que seja uno e diverso», um mundo, permito-me eu acrescentar, que, para todo o sempre, declarasse intocável o direito de cada qual ser «persa» pelo tempo que quiser e não obedecendo a nada mais do que às suas próprias razões... […]
[A] terrível tragédia iniciada em 1492 com as invasões e a conquista [:] Ao longo de quinhentos anos, os indígenas da Iberoamérica (é intencionalmente que emprego esta designação para não deixar fora de julgamento os portugueses, e depois os brasileiros, seus continuadores no processo genocida, que reduziram os 3 ou 4 milhões de índios existentes no Brasil na época dos descobrimentos a pouco mais de 200 000 em 1980), esses indígenas andaram, por assim dizer, de mão em mão, da mão do soldado que os matava à mão do senhor que os explorava, tendo por meio a mão da Igreja Católica que lhes trocou uns, deuses por outros, mas que afinal não conseguiu mudar-lhes o espírito. […]
Conta Eduardo Galeano, o grande escritor uruguaio, que Rafael Guillén, antes de tornar-se Marcos, veio a Chiapas e falou aos indígenas, mas eles não o entenderam. «Então meteu-se na névoa, aprendeu a escutar e foi capaz de falar.» A mesma névoa que impede ver pode ser também a janela aberta para o mundo do outro, o mundo do índio, o mundo do «persa»... Olhemos em silêncio, aprendamos a ouvir, talvez depois, finalmente, sejamos capazes de compreender.“

(extraído de José Saramago: “Chiapas, nome de dor e de esperança”, Visão, 9 de Junho de 1998)
Publicado, 12/10/2017




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