100 anos - Isabel da Nobrega
Em 2025 assinala-se o centenário do nascimento da escritora Isabel da Nóbrega (1925–2021), nascida em Lisboa a 26 de junho. A CJS-UVigo deseja homenageá-la com esta evocação.
Escolhida como escritora do ano pela APP, Associação de Professores de Português, e protagonista de numerosos eventos e atividades por ocasião dessa efeméride, como as promovidas pelo projeto Mulheres Escritoras, “Escritoras de língua portuguesa no tempo da Ditadura Militar e do Estado Novo em Portugal, África, Ásia e países de emigração” do Instituto de Estudos de Literatura e Tradição (IELT - NOVA FCSH), trata-se de uma autora cuja vida e obra é necessário recuperar e revalorizar. Não se pode entender o panorama cultural português do século XX sem considerar o peso da sua presença e da sua voz, em diferentes âmbitos.
Recordada, ainda hoje, de maneira indevida e limitada, como companheira ou musa de outros, confiemos em que as comemorações deste ano contribuam para o justo reconhecimento de uma escritora e jornalista que teve uma presença ativa e arrojada nos tempos pré- e pós- revolucionários e que se destacou como mulher livre e irreverente tanto na sua vida pessoal quanto no seu trabalho literário e na sua promoção dos direitos das mulheres.
Assim, não obstante estar inevitavelmente ligada à trajetória de José Saramago, com quem teve um relacionamento de quase 20 anos no período em que o escritor começou a ganhar projeção e em cuja carreira teve uma influência inegável, Isabel da Nóbrega é uma figura que merece ser reconhecida pelos seus próprios méritos. O legado intelectual e literário desta autora, no qual se destaca o romance Viver com os Outros (1964, cf. infra), é por si só merecedor de consideração especial na história da literatura portuguesa.
Isabel da Nóbrega escreveu romances, contos, peças de teatro e até literatura infantil e participou muito ativamente nos círculos culturais e intelectuais da época, cultivando amizade com escritoras como Natália Correia e Sophia de Mello Breyner Andresen. Em 1952 publica o primeiro livro, Os Anjos e os Homens, e em 1955 a peça de teatro O Filho Pródigo ou o Amor Difícil, peça apresentada no Teatro Nacional D. Maria II, mas foi com Viver com os outros (1964) que obtém aclamação da crítica e público (cf. DCAP). Como destacada e prolífica cronista, realizou numerosas colaborações em diferentes jornais e revistas (como A Capital, Diário de Lisboa, Diário de Notícias ou Primeiro de Janeiro) e em programas de rádio. Traduziu também do francês e do inglês romances de Tolstoi, Léon Bloy, Gilbert Cesbron, Pirandello e E. Caldwell, assim como textos variados para o Instituto Britânico. Foi uma das organizadoras do 1º Congresso de Escritores da APE em 1976 e recebeu, ao longo da vida, diversos prémios e condecorações.
Destemida e ousada, defendeu a emancipação das mulheres e pugnou por manter a sua autonomia na vida cultural e social.
Cabe também salientar o seu envolvimento nos escassos debates públicos realizados em Portugal nos anos 1960 sobre a situação da mulher na sociedade portuguesa, questão muito raramente tratada na esfera pública durante o Estado Novo. Assim, em 1967 participou no colóquio “A Mulher na Sociedade Contemporânea” (organizado em 1967 pela Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa) com a intervenção “Mulher objecto, mulher reflexo: mulher mistificada”. No ano seguinte, organizado pela mesma instituição, realizou-se outro colóquio, “Sobre a Condição da Mulher Portuguesa”, em que Isabel da Nóbrega interveio novamente. O texto de Isabel da Nóbrega inaugura as atas deste segundo colóquio, editadas por Urbano Tavares Rodrigues, que chegaram a ter uma segunda edição em 1972. Trata-se de um texto, como a própria autora afirma, sem vocação de “estudo” ou “ensaio”, mas de “denúncia apenas” e de um caráter manifestamente político (em contraposição com o carácter académico dos restantes textos do livro). Neste ensaio, a autora, reivindica o direito das mulheres à educação e ao trabalho e denuncia o excesso de religiosidade e a redução das mulheres a um objeto, sem capacidade de ação própria e independente. Escrito sem pretensões literárias e com uma linguagem fresca e vivaz, salpicada de ironia, trata-se do trabalho mais moderno e marcante do livro.
Felizmente, a propósito do seu centenário, nos sites da APP e do projeto Mulheres Escritoras é agora possível encontrar um vasto conjunto de informações sobre a autora e a sua trajetória. Do 1 de junho até ao 22 de setembro poderão ser visitadas as exposições «Os livros de Isabel da Nóbrega» e «Isabel da Nóbrega no arquivo de Mário Dionísio e de Maria Letícia», e nos dias 26 e 27 de junho realiza-se o colóquio internacional “Em que mundo vivemos?” Isabel da Nóbrega – 100 anos, na Fundação Calouste Gulbenkian e na NOVA FCSH.
No entanto, se fizermos uma revisão das principais obras de referência na área da literatura portuguesa verifica-se que a sua presença é mínima. A História da Literatura Portuguesa, de Lopes e Saraiva, dedica-lhe só umas breves linhas e no antigo Dicionário de Literatura, de Jacinto do Prado Coelho, menciona-se na parte final da entrada “Romance e Novela na Literatura Portuguesa”, em referência à atualidade literária da altura. Infelizmente, nas historiografias mais recentes de Gavilanes e Apolinário ou de Vecchi e Russo, bem como na História Crítica da Literatura Portuguesa, de Carlos Reis, não consta referência alguma a Isabel da Nóbrega.
Paralelamente, também não existem quase estudos nem artigos sobre Viver com os Outros, um dos romances mais inovadores e originais do período pré-25 de Abril, o qual já recebeu em 1965 o Prémio Camilo Castelo Branco, dos mais prestigiados na altura em Portugal, e louvado pela crítica da época. É interessante apontar neste sentido a existência de uma tese de doutoramento sobre a autora de 2003 “Viver com os outros e reunião de família: encontros e desencontros”, de Maria Elvira Brito Campos (USP).
Injustamente esquecido para o cânone da literatura portuguesa do século XX, trata-se de um romance experimental na forma e questionador no fundo, influenciado pelo nouveau roman francês, e invulgar em relação aos temas tratados. A ação acontece durante um jantar de amigos na casa de uma família burguesa de Lisboa, onde acompanhamos as personagens nos seus pensamentos e reflexões, que alternam com parte das conversas que mantêm entre elas. Particularmente, o diálogo constante e a oralidade têm um peso fundamental e contribuem para a expressividade e viveza do texto, que reflete magistralmente as hesitações, pausas, lapsos, interrupções e ritmo da linguagem falada, que é mostra de uma audácia e ambição da autora consideráveis para a época.
Isabel da Nóbrega recorre a técnicas narrativas em que se entretecem o monólogo interior e os fluxos de consciência com a narração omnisciente e o diálogo, num relato fragmentado e polifónico em que se expõem os matizes das interações humanas, os valores, as ambivalências e as hipocrisias das personagens e o grupo social ao que pertencem, através das suas opiniões sobre a convivência e as relações, e dos seus dilemas morais. Sem uma voz narrativa clara, o leitor vê-se obrigado a reconstruir e interpretar o que está a suceder e identificar, aos poucos, os participantes no jantar. Embora exista certa linearidade cronológica, a multiplicidade de camadas entre fragmentos de diálogo, fluxos de consciência e ocasional descrição omnisciente permite diversas interpretações.
Nos temas abordados pelas personagens, também inéditos e arriscados na época, e nas suas posições, intercalam-se questões políticas (o comunismo, o divórcio e o aborto) e evidencia-se uma vontade de crítica social ante a superficialidade do grupo retratado, imersos numa vida de aparências. Mas no romance desponta também o debate existencialista e oferece ao público leitor uma reflexão sobre a solidão e a condição humana, a incomunicabilidade e o mistério que permanecem e, apesar das conversas que possamos vir a ter, viver com os outros nunca é verdadeiramente viver com os outros.
As contradições e dificuldades desta convivência mostradas no romance junto com a inclusão de elementos dissidentes ou desconfortáveis em relação com o ideário promovido pela ditadura apontam para a necessidade de transformação social . A pluralidade de vozes e as múltiplas perspectivas sugerem um desafio a narrativas unívocas ou verdades únicas, propondo um espaço de resistência e crítica ao autoritarismo do Estado Novo.
Também é possível apreciar, na maneira em que Isabel da Nóbrega apresenta alguns estereótipos femininos característicos da época confrontados com os pensamentos e as ideias das personagens, um questionamento dos limites impostos às mulheres pela sociedade patriarcal.
Isabel da Nóbrega construiu um romance ambicioso e complexo, profundo e vanguardista, com uma crítica social e política no tempo da ditadura que não foi detetada pela censura, em que sobressai uma extraordinária utilização coral do diálogo e o discurso oral, intercalado com o monólogo interior e o fluxo de consciência. Trata-se de um romance de uma qualidade literária invulgar que mantém um grande apelo ainda na atualidade.
A singularidade da ficcionista, tradutora, cronista e ativista manifesta-se em todo o seu percurso literário e social. Podemos afirmar, hoje, que Isabel da Nóbrega teve um papel marcante na renovação das letras portuguesas, desde meados do século XX até depois da Revolução de 1974, com o seu corajoso compromisso com a sociedade e a posição das mulheres, cujas transformações sempre defendeu.