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A lição de José Saramago, 10 anos após a sua morte

Hoje, há dez anos, morreu José Saramago na ilha de Lanzarote, na sua jangada no meio do Atlântico. No seu multitudinário funeral em Lisboa as pessoas alçaram os seus livros para o ar. Livros como passarolas, que ainda hoje nos ajudam a compreender e enfrentar os constrangimentos da nossa condição humana. Livros que nos alertam para o quão frágil é o equilíbrio ecológico, social e político do nosso planeta e dos seres que o habitam, e que explorámos de forma predatória e injusta.

 

Mas não se engane ninguém. A multidão que presenciou o funeral tem sido, também, a encenação de uma triste excisão. O então presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, não compareceu. Não quis interromper as suas férias para homenagear o primeiro Prémio Nobel de literatura em língua portuguesa. Uma decisão de política cultural cega e nefasta, apesar das forçadas explicações oferecidas no seu momento, e que projetou para o futuro uma ideologia marcada pela falta de sensibilidade social e uma sobreposição dos interesses económico e financeiro sobre todos os graves problemas da humanidade e das suas sociedades.

 

Saramago e Cavaco Silva representam duas grandes ideias sociais e culturais, claramente opostas e que cumpre lembrar no dia de hoje. Por um lado, está a memória cultural viva da resistência à ditadura e de um processo revolucionário sócio-político e humanista, da reivindicação dos deveres e responsabilidades dos seres humanos perante o mundo, que se estendeu até ao âmbito cultural e de criação, e que se entreteceu com a própria vida de um autor que sempre se assumiu como aprendiz das personagens da sua ficção. Pelo outro, está a implantação feroz do neoliberalismo em Portugal, unido a um conservadorismo intelectualmente medíocre. Com um governo que protagonizou a censura a O Evangelho segundo Jesus Cristo por parte de António Sousa Lara, sub-secretário de cultura do governo do então primeiro-ministro Cavaco Silva, que, quando acedeu à presidência da República, condecorou o fiel escudeiro com a Ordem do Infante D. Henrique, destinada a "quem houver prestado serviços relevantes a Portugal, no país e no estrangeiro". Uma sinistra ironia. Enquanto presidente, Cavaco Silva também não teve reparos em identificar o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, ainda em 2008, com o Dia da Raça do salazarismo. Estas foram só algumas das razões que levaram José Saramago a caracterizá-lo como um “génio da banalidade”, e Cavaco Silva confirmou o epíteto ao não saber demonstrar sentido de Estado quando decidiu não assistir ao funeral, como também não assistiu à cerimónia de trasladação dos restos mortais de Jorge de Sena a Portugal em 2009, no “regresso do indesejado”. Mas, tal como Sena, também Saramago regressou e continua a mostrar-nos quão importante é não cessarmos de enfrentar as omnipresentes "banalidades do mal".

 

Escrever sobre Saramago e pensar com ele é talvez a melhor homenagem que se lhe pode fazer. Fazemo-lo hoje com a divulgação de um artigo do nosso colega Carlos Nogueira, cotitular da CJS, que acaba de sair na Romance Quarterly, e que anexamos a esta postagem. Nele se explica e analisa como a representação e problematização do mal estão sempre presentes no trabalho literário de Saramago. Carlos Nogueira propõe-nos uma profunda leitura crítica de Ensaio sobre a Cegueira à luz dos conceitos filosóficos do mal radical (Kant) e da banalidade do mal (Hannah Arendt) estabelecendo um diálogo entre literatura, filosofia e ciências naturais.

 

Nos tempos que vivemos, o mal, seja ele banal ou radical, económico ou político, levou o nosso planeta e a espécie humana à beira da autodestruição. Esta análise exemplar de Ensaio sobre a Cegueira, no vigésimo quinto aniversário da sua publicação, mostra como este romance

 

"vale como alegoria de uma condição humana na qual o mal não existe apenas para dar origem a uma ordem social e humana mais justa e integral; existe num tal grau de extremismo e radicalidade inumana que, num certo sentido, anula todas as vitorias morais do ser humano, todas as conquistas de solidariedade social, todos os ideais de construção de uma sociedade capaz de se construir em função de um “bem comum” para todos." (p.12)

 

Cabe-nos esperar que a humanidade e os poderes que a governam sejam capazes de aprender a lição de José Saramago.

 

(Burghard Baltrusch, I Cátedra Internacional José Saramago da Universidade de Vigo)

Publicado, 17/06/2020




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